Sem categoria

Lévi-Strauss, a França e o Islã

Comentários sobre:

https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2022/01/nao-se-preocupe-senhor-levi-strauss-sua-cultura-esta-a-salvo.shtml

“O que Lévi-Strauss deixa escapar é que integrismo e fundamentalismo são movimentos cristãos,[1] católico e protestante, surgidos no final do século 19 que defendem um ativismo político de direita e atacam veementemente a ciência, o darwinismo e os livros didáticos, respectivamente. Quando Lévi-Strauss associa integrismo ao islamismo comete erros de definição, de conceito, de aplicação, gerando não apenas confusão, mas contribuindo para a discriminação e o preconceito contra os praticantes dessa fé.”

O que Osman deixa escapar é que, por inadequada e canhestra que seja (quais comparações transculturais não o são?), a palavra “integrismo” é uma adaptação, uma metáfora, que se adequa bem ao que os franceses têm aversão desde a lei da laicidade: tentativas de fazer o Estado curvar-se a exigências religiosas ou implementar ditames religiosos (da maioria ou da minoria). Justamente o que o islamismo político preconiza.

[Para uma discussão dos termos, vide Pierucci, A. F. (1992). Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa. Revista USP, (13), 144-156. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i13p144-156]

“Como Edward Said trata em “Covering Islam”, a cobertura jornalística da Revolução Iraniana contribuiu para criar, reforçar e disseminar o equívoco, associando integrismo, fundamentalismo, radicalismo, fanatismo ao islamismo. Quando Lévi-Strauss faz essa afirmação, contribui ainda mais.”

Não: Khomeini, Khamenei, Ibn Abd al-Wahhab, Sayyid Qutb, Hasan al-Banna, Shaykh Nasrallah, Abu Muhammad al-Maqdisi, al-Qardawi, Bin Baz, al-Albani, Muhammad Abd al-Salam Faraj, Ayman al-Zawahiri, Bin Laden, Maududi, o FIS argelino, o Hamas, o Hezbollah, os Talibãs, o Estado Islâmico etc. que contribuem ainda mais. Você está colocando o poder de influência de Lévi-Strauss num pedestal muito acima do que qualquer influência social que ele pudesse ter além dos confins limitados de uma disciplina marginal, e ainda supondo que uma entrevista qualquer a um jornal brasileiro tenha uma influência real maior do que qualquer influenciador digital ou pregador televisivo como Qardawi tem (sem falar de movimentos, redes, associações, partidos e instituições ativas).

“Resta saber se, como propõe o autor, a disciplina aceita fazer a lição de casa e sair de uma posição defensiva e fazer a autocrítica, inclusive de seus ícones.”

Para qualquer um que conhece a história da antropologia, isso sempre foi feito. E o termo “lição de casa” que viceja nas mídias é paternalista e condescendente, sugerindo que fosse algo óbvio e fácil mesmo para alguém que supostamente teria má vontade de ver a realidade. É, em suma, ou um argumento de autoridade (frequentemente vago e sem autoridades citadas) ou de obediência a algum preceito econômico (mormente dito com referência às contas nacionais e gastos do Estado em comparação com agentes externos). É um jeito educadinho e cínico de dizer “Eu sei mais que você, vai estudar e depois a gente conversa”; e, nesse caso, “sua disciplina é imoral e tem um pecado original que não pode ser expurgado”.

“Se, em 1989, eu não fosse apenas uma aluna de graduação, gostaria de ter respondido ao senhor Lévi-Strauss: Não se preocupe, sua cultura está a salvo.”

Não é exatamente o que dizem muitos franceses em relação ao integrismo e ao comunitarismo, e não é o que diz o lado oposto (os identitários, “decolonialistas”, os fundamentalistas islâmicos), independentemente da validade da asserção em si (e ou de suas interpretações categóricas). Para gente de um lado, o problema, e, de outro, a solução do problema, está justamente nesse “fato” (“a cultura francesa está em decadência”). Uns acham isso bom; outros, ruim. Ambos veem a cultura, mais ou menos fixa, como problema e como solução, somente invertendo os termos: a cultura francesa como solução (para ataques contra ela mesma) ou como problema (como intrinsecamente “racista”, “islamofóbica”, “laica”, “imoral” e por aí vai). Portanto, Osman demostra uma confiança que, no médio e longo prazo, não se sustenta.


[1] O artigo citado pela Folha, que às vezes tem relação distante com o assunto, afirma, parafraseando “Roberto Covolan, ex-professor da Unicamp e fundador da ABC² [Associação Brasileira de Cristãos na Ciência]”, que “Covolan aponta que E=MC², talvez a mais famosa equação da física, já era aplicável muito antes de Albert Einstein a descobrir. Ou seja, o homem não conseguir explicar certos fenômenos não significa que ele sejam carochinhas da religiosidade. Algumas leis escapam à compreensão humana. “A natureza já as conhece, nós é que não as conhecemos”, escreveu.” Aí misturam-se duas coisas: fenômenos incompreensíveis e explicações sobrenaturais. As explicações sobrenaturais podem se referir a fenômenos compreensíveis ou a fenômenos que se compreende segundo explicações naturais. Pode-se argumentar que as explicações religiosas de fenômenos naturais surgiram porque não havia explicação alternativa, natural, plausível (raios e trovões são causados pelos deuses); mas, mesmo que houvesse, outro aspecto desse fenômeno poderia ser explicado “religiosamente” (por que esse raio caiu em mim?). Mas o que Covolan parece dizer é que artefatos culturais como ideias religiosas são como “fenômenos naturais inexplicáveis”, coisas que “a natureza já conhece”, mas que não descobrimos ainda, ou só descobrimos através de sinais “revelados”. Assim como a fórmula de Einstein já era “aplicável” (aplicável por quem?) antes de ele a definir, há “leis” (quais?) que já existem. Aí se confundem as teorias que explicam fenômenos com os próprios fenômenos. As fórmulas, leis e teorias não existem na natureza. Se leis escapam à compreensão humana, elas não seriam leis no sentido científico, pois “leis” e teorias são criadas para explicar fenômenos (naturais ou sociais). Descobrir uma “lei” e não saber para que serve e o que ela explica é um paradoxo.

Deixe um comentário