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2022/2023

Publicados

Summoning redemption: A primazia da estética e alguns apontamentos para a conceptualização da relação entre heavy metal e religião. Revista Caminhos, vol. 20, n. 3, 2022. https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/12608/5790

Alvarenga Cherem, Y., & Zahreddine, D. (2021). Integration, conflict, and autonomy among religious minorities in the late Ottoman Empire: the Greek-Catholic (Melkite) Church and sectarian turmoil in Mount Lebanon and Damascus. Estudos Internacionais: Revista De relações Internacionais da PUC Minas, 8(4), 59-79. http://periodicos.pucminas.br/index.php/estudosinternacionais/article/view/24380/17833

Youssef Cherem (2016): The Absent Subversion, the Silent Transgression:
The Voice and the Silence of the Body in Some Contemporary Iranian and Arab Artists,
Konsthistorisk tidskrift/Journal of Art History, http://dx.doi.org/10.1080/00233609.2016.1170068

Católicos de rito não-latino e a questão do celibato clerical. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES. , v.10, p.89 – 106, 2017.

A utilização do sistema de preparação de textos LaTeX na produção de textos acadêmicos no Brasil: uma investigação preliminar e perspectivas. Informação & Informação (UEL. Online). , v.20, p.228 – 249, 2015.

Por um espaço público laico: os atentados ao Charlie Hebdo e algumas repercussões no Brasil. Malala. , v.3, p.168 – , 2015.

Jihad: interpretações de um conceito. Ciências da Religião (Mackenzie. Online). , v.11, p.154 – 184, 2013.

As ambiguidades do direito islâmico em contextos contemporâneos (The ambiguities of Islamic law in contemporary contexts). Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião (Online) , v.9, p.153 – 170, 2011.

Jihad: duas interpretações contemporâneas de um conceito polissêmico. Campos (UFPR), v.10, p.83 – 99, 2010.

Dissensões sobre o Público e o Privado na República Islâmica do Irã. Campos (UFPR), v.7, p.67 – 81, 2007.

Os assentamentos israelenses nos territórios ocupados: raízes históricas e sua influência no processo de paz. Fronteira (PUCMG). , v.1, p.105 – 127, 2002.

Entrevista para a Radio France Internationale. RFI Convida – Bashar Al-Assad é a única opção para evitar dissolução da Síria, diz especialista em Oriente Médio

https://rfi.my/7SJv

www1.folha.uol.com.br

O Líbano, a França e o Oriente Médio

Youssef Alvarenga Cherem

12/08/2020

A explosão no porto de Beirute, no último dia 4 de agosto, exacerbou a crise política e econômica pela qual vem passando o Líbano. As tentativas do governo libanês de esboçar alguma resposta efetiva têm sido vistas como mais um sinal de incompetência e corrupção do governo, realimentando um ciclo de protestos que vem se estendendo há meses.

A negligência criminosa que resultou na explosão é interpretada como evidência trágica da falência do sistema: uma elite política clientelista que distribui benesses a seus apaniguados em detrimento da população. O Estado não consegue prover serviços fundamentais, como luz e saneamento básico, sendo também culpado pela crise econômica e financeira que levou à desvalorização da lira, a moeda local, resultando em uma queda brutal do poder de compra e aumento da pobreza (cerca de 50% da população vive atualmente abaixo da linha de pobreza).

O Líbano conta com um sistema político confessional, em que cada comunidade religiosa tem garantida uma representação proporcional ao seu peso demográfico —embora o último censo oficial tenha sido realizado em 1932. O Estado libanês atual foi criado por um acordo não escrito, segundo o qual os cristãos renunciavam ao apoio ocidental, ao mesmo tempo em que os muçulmanos reconheciam a independência do Líbano, abrindo mão da união com a Síria. Uma neutralidade difícil e testada frequentemente, como nas guerras civis de 1958 (que culminou com intervenção americana) e de 1975-1990 (que implantou a hegemonia da Síria, cujas tropas só deixaram o país em 2005).

O sistema político pós-guerra civil presenciou a ascensão dos xiitas, anteriormente marginalizados política e economicamente, e cujo grupo mais influente é o Hezbollah (“Partido de Deus”) –aliado da Síria e apoiado pelo Irã, é ao mesmo tempo partido político, provedor de serviços (educação, serviços médicos etc.), milícia armada e organização terrorista.

Apesar da insatisfação generalizada, uma reforma ou transformação do sistema político não é tarefa simples. Além disso, não existe uma oposição política organizada capaz de empreender reformas constitucionais profundas e de resultados incertos.

É nesse contexto que a visita do presidente francês Emmanuel Macron se insere como um possível catalisador de ruptura. Macron, mesmo tendo aventado a criação de um ainda vago “novo pacto político”, recusou interferência francesa direta no processo e reiterou que toda mudança deveria ser efetuada pela sociedade libanesa.

Os laços com a França estendem-se muito além do período do mandato: aliada tradicional dos cristãos do Oriente Médio e especialmente dos católicos (maronitas, melquitas e outros), foi o país europeu que liderou a intervenção humanitária após a guerra civil entre drusos e cristãos, em 1860. O papel da França se faz sentir sobretudo na área cultural, em escolas e universidades de língua francesa. No século 20, seus laços se estreitaram também com outras comunidades, como os sunitas e os xiitas. O líder druso Kamal Jumblat, assim como vários ministros e presidentes, teve educação francesa.

O próprio discurso de Macron, assim como as manifestações a favor da mudança política, demonstram mais uma vez o caráter paradoxal da política libanesa: para alcançar seus objetivos políticos do momento (seja a independência, seja mudanças estruturais ou reforma política), é necessário recorrer a alianças com agentes externos.

Já foi argumentado que o propósito da França seria resgatar o Líbano, atualmente sob influência síria e iraniana, à órbita de influência ocidental. O Líbano encontra-se, então, mais uma vez, andando na corda bamba, frente à escolha entre um ideal utópico de neutralidade e pluralismo cultural e político e a fragmentação social e política que gerou e sustentou a guerra civil e que fomenta a instabilidade crônica do país. Nas palavras do pensador libanês Michel Chiha: “Nós vivemos, e somos condenados a viver perigosamente”.

Cherem, Y. (2015). Por um espaço público laico: os atentados ao Charlie Hebdo e algumas repercussões no Brasil. Malala, 3(5), 168-174. https://doi.org/10.11606/issn.2446-5240.malala.2015.107849

Matéria no “Arte!Brasileiros”:

Para além do estereótipo: a arte brasileira por asiático-brasileiros

Como raramente publicam partes relevantes de uma “entrevista” (ou sei lá como se chama), segue aqui a íntegra.

(1) Acho que um ponto interessante para começarmos essa conversa, Professor, é que quando nós brasileiros pensamos em “Ásia” o que costuma vir em nossa mente são países do Leste Asiático, em especial Japão e China. Porém, a Ásia é muito maior do que isso. Por que acha que essa “redução” acontece e quais acredita serem as consequências dessa visão?

Existe uma tendência comum para simplificação de categorias, especialmente no discurso público. Mas também existe a falta de familiaridade do público médio com outras categorias (como Sudeste Asiático, Ásia Central, Subcontinente Indiano, Oriente Médio etc.). Por outro lado, mesmo a categoria “Ásia” é imprecisa. É uma questão de costume linguístico, uma metonímia. Talvez a pergunta pudesse ser, “O que você quer dizer quando diz “Ásia” ou “asiático”? Fazer essa pergunta para alguém na Rússia, no Reino Unido, nos Estados Unidos, em Israel e no Brasil vai gerar respostas diferentes, dependendo da pessoa e do contexto. 

(2) Acompanhando algumas discussões de militantes asiático-brasileiros, vi serem levantadas questões sobre as diferenças dos preconceitos com pessoas de ascendência asiática amarela e de outras ascendências asiáticas (indiana, síria, iraniana, israelense, libanesa, etc.). O movimento antirracista que entrou em foco nos últimos meses parece ter ampliado essa discussão, falando também das diferenças em relação ao racismo com pessoas negras e indígenas. Qual a sua visão a respeito dessas diferenças?

Diferentes marcadores de pertença são “acionados” de acordo com o contexto pessoal e coletivo. Mesmo essa categorização “amarelo”, não vejo isso se estender a outros países além do Brasil. Eu julgava esse termo até ofensivo, démodé. Tudo depende de como são empregados esses termos, e por qual falante da língua. Quanto às diferenças em relação ao racismo, é claro que há um tratamento distinto: no Brasil há uma grande diáspora japonesa não por acaso, pois os japoneses eram considerados os “brancos da Ásia”, eles próprios posteriormente com um império colonial. 

(3) Hoje, sua pesquisa se debruça, entre outras questões, sobre Oriente Médio e arte contemporânea no Oriente Médio. Como e por que você se aproximou desse tema?

Desde a graduação pesquiso sobre o Oriente Médio. Ainda não há uma grande quantidade de pessoas que lidam principalmente com esses temas no Brasil, e pouquíssimas disciplinas obrigatórias que lidem somente com isso, em qualquer disciplina. Veja o caso de minha instituição, a Unifesp: no curso de História, há uma “História da Ásia”, um semestre na graduação. Isso seria impensável, a não ser como curso muito introdutório, em uma universidade americana. O professor dessa disciplina acaba sendo um especialista em uma região da Ásia. Por outro lado, quantos professores temos de “História Europeia”? 

(4) Você acompanha artistas árabes que trabalham no Brasil ou artistas de ascendência árabe que desenvolvem um trabalho voltado à ancestralidade?

Não. Isso praticamente não existe. Temos exemplos na literatura, um Milton Hatoum, um Raduan Nassar… Os “árabes” no Brasil – e coloco árabes em aspas porque grande parte deles nem se considera “árabe”, nem quando veio, muito menos depois, ou se considera árabe somente num sentido linguístico ou cultural e não étnico ou político –  esses árabes, ou melhor, sírios e libaneses cidadãos do Império Otomano, pouquíssimos deles têm uma ligação relevante com a terra de seus antepassados. 

(5) O que você acha que as pessoas não entendem sobre arte contemporânea no/do Oriente Médio e que seria um primeiro passo para olhá-la de forma mais justa, profunda e interessante?

O primeiro passo é despir-se de estereótipos. Quando se pensa em um artista russo, a primeira coisa vem à cabeça não é: “é ortodoxo”. Por que pensar que a coisa mais importante ou mais interessante das pessoas do Oriente Médio (artistas ou não) é uma religião (na qual ele pode ou não crer, diga-se de passagem)? Não que as religiões não sejam mais importantes na região do que o laicismo ocidental toleraria, mas ver só esse lado nos fecha para outras experiências relevantes. Outra coisa a se pensar é que não se pode julgar a arte da região (ou de artistas originários dela) a partir de outros padrões, diferentes dos nossos: pelo contrário, só é possível entender essa produção de arte se entendermos a arte contemporânea “ocidental”.

(6) No livro “Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente”, Edward Said fala de como o Oriente é praticamente uma invenção europeia, no qual encaixam aquilo que veem como “episódios romanescos, seres exóticos, paisagens encantadas, experiências extraordinárias”, etc. Pode comentar um pouco a sua opinião sobre essa ideia?

O livro (Orientalismo) tem vários problemas factuais e conceituais. Ele faz uma caricatura da história dos estudos sobre o Oriente. Para Said, o discurso sustentava e motivava projeto imperialista – porém, muitos dos estudiosos eram simpáticos às causas nacionais dos povos colonizados ou oprimidos. No entanto, para Said, são todos farinha do mesmo saco, com algumas distinções qualitativas entre um e outro. Além disso, Said junta todo tipo de produção cultural, desde o folhetim, passando pela ópera, teatro, memórias de viagens, romances, opiniões de administradores coloniais, até os savants oitocentistas e as eminências de Oxford. Julgar todos esses tipos de produção histórica, linguística, musical, visual, literária, como etnocêntrica ou preconceituosa é julgar pelo mínimo denominador comum; é um julgamento de valor generalista, abstrato, retórico e anacrônico. O mais irônico de tudo isso é que Said não dá voz aos “orientais” para falarem. Não se vê o quediva do Egito ou ministros otomanos, os reformistas islâmicos Muhammad Abdu ou Rashid Rida, ou o reacionário sultão otomano Abdulmejid, mas vemos Lord Cromer, Curzon, Giuseppi Verdi e Joseph Conrad. (Só faltou Bram Stoker.)

Há muitas lacunas no livro. Falta perspectiva comparativa (é centrado no OM árabe). Falta análise do orientalismo alemão, muito mais importante que o inglês ou francês. Se os alemães não tinham império colonial, como é que o orientalismo pode estar ligado umbilicalmente ao imperialismo? Parece que, para Said, o imperialismo ruim é só o europeu: impérios persa, omíada, abássida, fatímida, otomano são isentos de responsabilidade e outros nem são mencionados. Nunca se sabe nem quando o “Orientalismo” nasceu, se foi com os gregos, com Dante, com Napoleão, e por aí vai… 

O paradigma saidiano tem tido um efeito mistificador e estultificante no cenário acadêmico brasileiro. “Orientalismo” é um shibboleth, um fetiche, um amuleto. Não é a única causa, mas é um dos fatores da situação do jeito que está. Fecha-se a possibilidade de uma análise crítica, quando se posiciona a partir de uma perspectiva que o crítico Harold Bloom chama de “escola do ressentimento”.

“Orientalismo” acaba sendo um conceito vazio e disforme, que implica quando muito uma atitude crítica em relação aos métodos de produção de conhecimento sobre outras culturas, e que geralmente para aí: Said não fornece conceito algum para as ciências humanas entenderem como o “Oriente” realmente é. Ele só alerta para o que ele não é, ou não parece ser, segundo sua interpretação literária. E pior: no limite, a própria possibilidade de conhecimento é negada aos que não compartilham de determinada identidade. Said mesmo diz: “Digo explicitamente [em Orientalismo] que não tenho o menor interesse e muito menos capacidade para mostrar o que o verdadeiro Oriente e o Islã realmente são.” (Said, Posfácio à edição de 1994 de Orientalismo.)

Isso gera uma política identitária deletéria e exclusivista, calcada na assunção do lugar de fala autorizado é quase sinônimo de pesquisa e de “verdade”; onde púlpito, sala de aula e palanque político se confundem. É o que o estudioso Aaron Hughes chama de “tirania da autenticidade”. É o paradoxo de essencializar o islã usando o discurso de que “quem essencializa são os outros”. Isso leva a misturar teologia e história de uma forma muito insidiosa: em conciliábulos acadêmicos insulares e em mídias não críticas. São propalados absurdos, tergiversações ou propaganda apologética como “O islã, em sua origem e fundamentos, é contra a opressão às mulheres.” (https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/ o-isla-em-sua-origem-e-fundamentos-e-contra-a-opressao-as-mulheres/), que “islã” significa “paz”, que o Alcorão é um livro perfeito, no qual nem um ponto foi mudado, que jihad é uma luta psíquica contra o ego, que existe “liberdade religiosa” no islamismo tradicional, e tudo isso passa como se fosse pesquisa acadêmica. Não é. 

Acaba-se não fazendo nenhuma das duas coisas: nem teologia islâmica, nem história ou ciências sociais. É um discurso açucarado, idealizador.

Mas, no final das contas, não precisamos de Said para perceber distorções do discurso do senso comum, dos apologistas de plantão, e de profecias apocalípticas de um pastor texano que discursa para neopentecostais do governo brasileiro. Quem mais cria mitos sobre essa região não são os “orientalistas” enfurnados em uma biblioteca na Holanda ou em São Petersburgo: são os nacionalistas religiosos americanos dispensacionalistas e seus sequazes brasileiros, que acreditam que Moisés e Abraão eram personagens históricos e que um deus do deserto teria dado uma escritura eterna de uma terreno para outro personagem mítico, Josué, e seus comparsas, cometerem limpeza étnica, e em nome desse mesmo mito fazerem o mesmo hoje em dia. 

Parte 2

(1) Você diz que “existe a falta de familiaridade do público médio com outras categorias (como Sudeste Asiático, Ásia Central, Subcontinente Indiano, Oriente Médio etc.). Por outro lado, mesmo a categoria ‘Ásia’ é imprecisa.” Acha que seria importante aumentar a familiaridade das pessoas com esses termos para que vissem a Ásia de forma mais ampla ou pensa em uma categoria mais precisa (ou menos imprecisa) de definição?

Todas as categorias “fatiam” a realidade, e funcionam dependendo do contexto. Esses termos são (ou deveriam ser) parte da geografia e história do ensino básico (fundamental e médio). Naturalmente, isso não resolve o “problema”, que talvez não se encontre nem aí. Categorias e conceitos só fazem sentido porque reduzem a complexidade da realidade para esta poder ser apreendida pelo intelecto. Sua primeira pergunta supõe um problema e evoca suas possíveis consequências nefastas, mas a ignorância abstrata de um público indefinido (“nós brasileiros”) ou sua suposta utilização contrária aos cânones geográficos estritos de composição dos continentes é o menor dos problemas das lacunas do ensino brasileiro sobre essas regiões. Qual o problema de se usar “Ásia” como sinônimo de “Extremo Oriente”? Esquecer os outros? Talvez. E se supusermos que no dia a dia pressupõe-se, entre certo grupo de pessoas, no Brasil, que se convencionou, por facilidade, designar como Ásia uma região específica do Continente Asiático, deixando subentendido que desde Israel até Filipinas é “Ásia” também? Mas, por outro lado, quando é que uma categoria não funciona? Vale a pena bater o pé e dizer que Israel e Irã estão na Ásia? Depende.

No ensino superior é até mais fácil apontar o problema: existem poucas cadeiras de “história da Ásia”, e mesmo assim, não dá para abarcar nem o necessário. Essas disciplinas terão, naturalmente, de ser muito superficiais, mesmo quando existirem. Vi o caso em que essa história é retratada como uma série de nacionalismos nos últimos 2 séculos. E chama-se “História da Ásia”. É uma saída, mas não deixa de ser um recorte muito limitado.  Essa questão é paralela a outra, que diz respeito mais à minha área de atuação: já cheguei a ver uma disciplina com o nome de “Império Árabe Islâmico”. Ora, de quais impérios estamos falando? E o aluno sai dali repetindo que conheceu “o império árabe islâmico”, no singular, misturando persas e turcos no meio.

Uma outra pergunta que alguém poderia fazer, seria: “O que você quer que seja entendido como Ásia e por quê?”

(2) O que te levou a começar a pesquisar Oriente Médio (desde a graduação)? Por que dedicar uma vida de pesquisa ao assunto?

Eu poderia falar que foram “afinidades eletivas”, mas isso é uma resposta muito subjetiva, fácil, e enganadora. Talvez o primeiro contato que eu tenha tido com pesquisas na área foi quando fiz um curso na Sciences-Po, em Paris, em 1999. Dois livros que me chamaram a atenção foram “Iran: Comment sortir d’une révolution religieuse”, de Farhad Khosrokhavar, e l’Échec de l’islam politique, de Olivier Roy. Vi que estava acontecendo uma coisa interessantíssima no Irã, transformações sociais e políticas que ninguém aqui suspeitava. Não que eu tenha escolhido uma área de concentração nas Relações Internacionais principalmente por ser descendente de libaneses. Mas uma coisa que me incomodava na época era a escassez de pesquisa sobre o assunto no Brasil. Não foi exatamente o caminho mais fácil, e não foi exatamente uma escolha. Se eu fosse ornitólogo teria uma vida mais calma. Além disso, sistema educacional brasileiro é tão disfuncional que resulta em alguém especializado em missionários evangélicos dando aula em uma disciplina obrigatória sobre islamismo.

(3) Você fala “Os ‘árabes’ no Brasil – e coloco árabes em aspas porque grande parte deles nem se considera ‘árabe’, nem quando veio, muito menos depois, ou se considera árabe somente num sentido linguístico ou cultural e não étnico ou político –  esses árabes, ou melhor, sírios e libaneses cidadãos do Império Otomano, pouquíssimos deles têm uma ligação relevante com a terra de seus antepassados”. Pode falar um pouco mais sobre isso?

Existe uma suposição de que “árabe” é uma designação étnica, um povo único, ou até mesmo uma “nação”. Isso é uma falácia. Os árabes formaram um império e conquistaram outros povos e impuseram sua língua e sua religião. Desde o século VIII, o Império Abássida, considerado por certo ramo da historiografia como uma Era de Ouro (do Islã e dos árabes), construiu seu legado filosófico, literário e científico com influxo de outros povos (arameus, persas, gregos, egípcios, judeus etc.). Essa designação da “nação árabe” como um projeto político utópico de união vem especificamente do século XX, e sempre teve uma relação conturbada com a identidade islâmica e com as identidades regionais (síria, egípcia etc.).

Então, alguém considerar-se “árabe” pode ser parecido com alguém considerar-se Latino-Americano. Uma pesquisa recente, encomendada por uma associação (https://www.youtube.com/watch?v=FjzHrzIaRUk), identificou uma grande quantidade de descendentes de árabes que não se sente parte de uma comunidade, que se interessaria mais em viagens para o Egito que para os países de seus antepassados, quase metade não se sente orgulhoso (ou é indiferente) à sua origem; quase metade tem vontade de visitar um país árabe… 48% diz “sofrer discriminação” não sei como, 25% não souberam identificar de qual nacionalidade árabe eram descendentes (basicamente: não me interesso em saber de onde meus avós ou bisavós vieram). “Entre os entrevistados, 53% se sente orgulhoso da origem. Quem tem esse pensamento é principalmente muçulmano, das classes A e B, das regiões Sul e Sudeste”. Ora, sendo os cristãos a maioria dos imigrantes sírios e libaneses, se quem se sente mais orgulhoso de ser árabe são os muçulmanos, conclui-se que ser árabe não era uma identidade fundamental ou primária desses imigrantes, no sentido de que existiam e ainda existem outras identificações — eram principalmente católicos, de cultura ocidental, de uma região com influência francesa, uma população arabizada, que se identificava com uma cultura e uma língua mas não com a religião da maioria da população. O objetivo desses imigrantes era se integrar o máximo possível. A endogamia não fazia sentido, nem naquela época, nem agora, ao contrário dos muçulmanos. Um muçulmano que vai a uma mesquita se identifica de alguma forma com “os árabes”; um maronita que vai à igreja se identifica com o Líbano, com a Igreja Católica, e com o Brasil. Chamar os libaneses, particularmente os cristãos, de árabes, é complicado. Muitos nem se definem como tal.

Sobre o Líbano, um bom panorama histórico:

Zahreddine, D. (2020). Do Pequeno ao Grande Líbano: os desafios contemporâneos da República Libanesa. Conjuntura Internacional, 17(2), 29-47. https://doi.org/10.5752/P.1809-6182.2020v17n2p29-47