Polêmicas/Debates

david roberts sultan hassan

Imagem: David Roberts, Mesquita de Sultan Hassan.

Aniconismo, padrões geométricos, arabesco

Símbolos. Tudo símbolos…

Se calhar, tudo é símbolos…

Serás tu um símbolo também?

Fernando Pessoa.

Tabbaa, Grabar e outros historiadores da arte islâmica rejeitam como não acadêmicas abordagens místicas, não históricas ou apologéticas. Terry Allen trata desse assunto em um longo artigo, Imagining Paradise in Islamic Art (tradução aqui).

Compare com a abordagem de Sylvia Leite em O simbolismo dos padrões geométricos na arte islâmica. Não há uma citação, uma fonte primária (e geralmente nem secundária), para embasar seus argumentos.

Aqui podemos citar Allen:

não parecem considerar necessário citar fontes da mesma época que sustentem sua visão de que vários monumentos históricos têm significado religioso simbólico. Atrevo-me a sugerir que não existe um corpo significativo de tais fontes. E concluo que os tauhidianos não estão continuando uma interpretação islâmica tradicional da arte, mas expandindo um conceito teológico islâmico tradicional, mesmo fundamental, para cobrir uma área da cultura à qual nunca era aplicada tradicionalmente. Eles simplesmente acham conveniente usar estereótipos ocidentais da arte islâmica para fazer isso.

Tais atitudes são entendidas pelo que são quando aplicadas a outras culturas; é irônico que os tauhidianos tenham adotado essas idéias, que eles poderiam muito bem, pelo contrário, denunciar. (Como pode qualquer representação física, por mais abstrata que seja, transmitir a unidade inefável de um deus onipotente e onipresente?)

Paradoxalmente, os defensores desse tipo de ideia moderna e ocidental estão de mãos dadas com os infames “orientalistas” (estes, também, modernos e ocidentais). Segundo Allen:

Então, qual é a fonte de nossa sabedoria recebida sobre arte islâmica? Essas idéias nos chegam do movimento romântico e foram preservadas na literatura popular e no orientalismo do século XIX. É um paradoxo claro que os estereótipos orientalistas sejam menosprezados quando se adéqua a um propósito antiocidental, mas adotados para comprovar interpretação supostamente “islâmica” da arte islâmica dos tauhidianos. [Como no Orientalismo de Edward Said, Nova York, 1978; para visões mais extremas, veja Orientalismo, Islã e Islamistas, ed. Asaf Hussain e outros, Brattleboro, 1984.]

Os estereótipos ocidentais sobre a cultura islâmica remontam muito além da Era Romântica, é claro, mas foram desenvolvidos e aplicados de maneira mais ampla durante o século XIX e chegando no século XX, a era primordial do colonialismo ocidental no mundo islâmico. Assim, a sabedoria convencional de que a arte islâmica, como outros aspectos da cultura islâmica, de alguma forma representa ou é determinada pela teologia islâmica, é simplesmente uma resposta etnocêntrica não examinada do Ocidente ao contato com outra civilização, não um ponto de vista tradicional do mundo islâmico. O raciocínio parece ter algo assim: os residentes e a cultura do mundo islâmico são fundamentalmente diferentes de nós (ocidentais); porque? porque eles são muçulmanos; portanto, todas as diferenças entre a cultura islâmica e a ocidental devem ser devidas ao islamismo.

Assim, retomando a ênfase no “óbvio” de Allen:

Como pode qualquer representação física, por mais abstrata que seja, transmitir a unidade inefável de um deus onipotente e onipresente?

Vejamos como tratar os sufis como “um só” e como neoplatônicos emanacionistas (reitero: sem evidências, citações etc.) cai em paradoxos desse tipo alertado por Allen:

“Os sufis enxergaram nas figuras geométricas uma maneira de representar Deus e os atributos divinos não por meios de coisas, mas de relações; não lhes atribuindo formas complexas, mas propondo alusões simbólicas e iniciando, assim, um movimento analógico que pode se expandir e se contrair infinitamente . . .
Ao permitir o movimento, a indefinição promove a flexibilidade. A representação de uma pessoa ou de um animal está limitada ao ser e à espécie à qual pertence ou, no máximo, a características já estereotipadas dessa espécie, enquanto um quadrado, por exemplo, pode remeter ao simbolismo da terra, à articulação das quatro disciplinas do Quadrivium[…] E ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa mobilidade não se deve a determinações arbitrárias, mas a relações analógicas naturais que se estabelecem entre o quadrado e os elementos citados e fazem do símbolo não uma mera representação, mas uma presentificação da realidade primordial que vem à tona por seu intermédio. (Leite, 2007, p. 34)

Mas representar por meio de relações nesse caso é representar por meio da visualidade; essas relações se tornariam visíveis; essa “visibilização” já seria uma definição (dizer o que pertence ou não pertence a um conjunto). mesmo o indefinido e inefável é definido (e restrito/limitado!) visualmente através de uma exclusão: a exclusão do particular. as “relações” que Leite pensa que os sufis vêm são expressas, sim por meio de “coisas”: a linha, o traço, as cores, as formas, os símbolos gráficos e caligráficos.
Representar deus através de linhas é tão “material” quanto representá-lo através de um sagüi ou uma laranja. Por que seriam “formas geométricas” mais simples, e não complexas? De fato o que encontramos é uma “complexificação crescente” na arte islâmica. Por que não poderia uma forma representativa ser simbólica (como o bezerro de ouro o prova)?

“E ao contrário do que pode parecer à primeira vista, essa mobilidade não
se deve a determinações arbitrárias, mas a relações analógicas naturais”…
como não é arbitrária? se o quadrado pode ser x e não-x, e se a relação analógica não é natural, mas “artificial”/cultural…
Se um quadrado é “símbolo” de algo, isso não se deve a “relações analógicas naturais”, mas sim convencionais; aqui a autora confunde símbolo com ícone ou com índice.

O que ela parece dizer é que um quadrado (uma abstração!) é um ícone, “relações analógicas” podendo ser interpretado como “semelhança”.

“A symbol is an image, taken in its semiotic aspect, which is distinguished by its organic nature and inexhaustible, multiple meanings… a symbol is, without exception, believed in” (Shukurov, 2009, pp. 218-219).

Sharif Shukurov, Art history as a theory of art. Bihzad and The Visual Anthropology of Iran. Ars Orientalis, 36, 2009, pp. 215-236.

Mas isso contradiz a afirmação de que os sufis “propõem alusões simbólicas”, pois essas alusões são, necessariamente, metafóricas, e essas proposições herméticas geralmente não transitam na cultura da sociedade em geral.

Finalmente, que “realidade primordial” é essa, que se faria presente (materializada?) através de um símbolo que é a própria presença do irrepresentável? Seria essa “realidade primordial” o deus ou o mundo das ideias? Ou se cai no panteísmo (suspeito no caso de Ibn Arabi) ou num paradoxo insolúvel (no nível de um monoteísmo rígido e puramente transcendental). Deus não se representa em seus atributos (a não ser simbolicamente, por metáforas), mas ele é compreendido através desses atributos. Um atributo como “bondade” não é a representação de Deus. Deus não é representado quando se representa a “bondade” em uma obra visual ou literária.

Por outro lado, resta por ser provada a relação direta do sufismo com a abstração geométrica.

Chad Kia (2012) mostra que essa relação pode ser tanto visual, tanto quanto verbal, e que mesmo as imagens verbais podem ser consideradas “figuras”. Por outro lado, pode-se argumentar que o caminho sufi para contemplação do deus pode ser “através de manifestações corpóreas da beleza” (Lloyd Ridgeon. Awhad al-Dīn Kirmānī and the Controversy of the Sufi Gaze.)

Chad Kia (2012): Sufi orthopraxis: visual language and verbal imagery in medieval Afghanistan, Word & Image: A Journal of Verbal/Visual Enquiry, 28:1, 1-18

Ver também:

Kia, Chad. “Is the Bearded Man Drowning? Picturing the Figurative in a Late-Fifteenth-Century Painting from Herat.” Muqarnas, vol. 23, 2006, pp. 85–105. JSTOR, www.jstor.org/stable/25482438. Accessed 9 May 2020.
The most popular pattern in Islamic geometric design, the interlocking 8-pointed star and cross (Fig. 5.2), becomes “form, expansion, contraction, the Breath of the Compassionate”! [16] This pattern exists in simple brickwork, in tiles, in wood and in solid gold! I wonder if the artisan who made this design thought of it as form, expansion, contraction and the Breath of the Compassionate God? Is this not a simple geometric design that involves a 4-point rotational symmetry? (Fig. 5.3) It is one thing to believe in mysticism and to follow in its practices and experience its positive effects. But it is a totally different matter when a new set of interpretations and symbols is created and propagated under the guise of historical truth. The symbolic mystical interpretations that have proliferated in these books on Islamic geometric design, pattern and ornament are based on a modern understanding of Islamic literature. There is no documented evidence that such interpretations were given to the art forms when they were created hundreds of years ago.
The general public unfortunately remains unaware of this. If in these books, that are now readily available on the market, their authors had made clear that the presented views were modern understandings of old forms, turning them into symbols, there would be no reason to object. The problem lies in presenting these modern mystical views as historical truths, as if these symbols were the meanings at the time the art forms were created. The non-Islamicist who is exposed to these books will anachronistically assume that a modern interpretation is the historical truth. Where does one draw the line between true historical research and the creation of and attribution of symbolic meaning to forms from the past? How can we redeem the geometric shapes, forms and patterns from the shrouds of mystical interpretations in order to see the precise scientific design at their basis?
Uma nova introdução ao livro citado por Leite, de Laleh Bakhtiar, afirma que não vai seguir métodos “científicos” “orientalistas”, mas sim a Escola Perenialista, de Guénon e Nasr. O resultado, estendendo uma observação já antiga de Grabar, é uma união esquisita de intelectuais muçulmanos militantes apologistas (fundamentalistas em maior ou menor grau), às vezes com verniz acadêmico, místicos perenialistas sufis ocidentais convertidos e pseudo-pesquisadores (que podem ou não ser intelectuais militantes ou místicos perenialistas) que, num nível mais baixo, reproduzem sem contestar o credo saidiano, agora imbuído de uma crítica anti-moderna. Daniel Varisco aponta e descreve essa situação de forma lapidar: “ad hominem arguments inevitably sink to the level of ad nauseam rhetorical whining”. Poderíamos alargar essa tipificação acrescentando que ambas as direções causais são possíveis, retroalimentando-se: a lamúria retórica alimenta o poço de ressentimento que enche as cumbucas do discurso efusivo e santimonial com críticas político-acadêmicas ad hominem.
A crítica de Daniel Varisco (Orientalism and bibliolatry, p. 200) merece ser citada:
After three decades of debate over the nature of an East/West divide, it is
time to forge a path out of the rhetorical quagmire in which most discussion of Orientalism in Western scholarship has been mired. Today, the preponderance of contemporary academic scholarship, despite the partisan political views of individual scholars, does not operate on the basis of an attainable and unassailable objectivity, nor do I believe that the best scholars of the past were as dogmatic as some excerpts from their writings might suggest. Critical scholarship, and I can think of no other kind worthy of being called scholarship, seeks to advance understanding based on available information and not to hermetically seal interpretation as dogma. May we all be liberated from the dogma-eat-dogma mentality where ad hominem arguments inevitably sink to the level of ad nauseam rhetorical whining. Rhetoric is indeed a political art, no matter who is doing the framing, but it is well to remember that it is primarily an art of persuasion. And in the final analysis, despite the inevitable disagreements, persuasion is the raison d’être for all texts, no matter the extent of their bias.

Mas e os neo-platônicos e os geômetras?

Uma outra teoria, desta vez com uma pátina acadêmica, é de Gülrü Necipoğlu, que deriva os padrões geométricos de teorias neoplatônicas. Novamente Terry Allen apresenta uma teoria muito mais simples e mais plausível em Islamic Art and the Argument from Academic Geometry. (original aqui.)  Para Allen, “The assertion that new contributions to mathematics led to specific applications in the visual arts is entirely unsupported.” A resposta de Necipoğlu é que

these doubts revolve around the insistence that
me­dieval artists/artisans were mostly illiterate and
intellectually unsophisticated laborers. This view
amounts to a segregation of Islamic art from other artis-
tic traditions that are commonly interpreted in relation
to aesthetic philosophies predominating in particular
contexts, a complex correspondence that cannot sim-
plistically be reduced to a provable “causal relation-
ship.(Necipoğlu, The Scruinizing Gaze, 2015).

Belting, arte islâmica, muxarabis e janelas

A resenha de David Roxburgh de Florence and Baghdad: Renaissance Art and Arab Science e também o artigo de Negipoglu, The Scrutinizing Gaze.

Segundo Roxburgh (minha ênfase):

Despite the avowed intellectual scruple of Florence and Baghdad, East and West do not receive equally nuanced considerations from Belting, and the characterization of Islamic art succumbs to an outmoded, albeit still pervasive, view traceable to the Orientalist scholarship of the nineteenth century. In this understanding, Islam’s position with respect to images fosters aniconism, permits only non–optically naturalist images when and if images occur, and propels the ascendance of calligraphy and geometrically based abstraction, which succeed because they are supplementary to figuration, with its unbridled possibility. Such ideas and their causal chain might appear to be common sense, but they are as yet only speculations.

One could quibble about the essentialization inherent in recurrent, if convenient, phrases such as “Arab visual theory,” “Middle Eastern way of thinking,” “abstract spirituality of their culture,” and “the Arab culture,” given the extremely broad temporal span embodied in the examples of Islamic art and culture adduced by Belting, or even about the basic utility of the binary of “West” and “East” figured in the title Florence and Baghdad. As it stands, the book only underscores the gulf between the two cities and their cultures and highlights what little they have to do with each other. Belting offers a detailed teleology of historical developments in Europe, an intricate chronicle of generations of artists and their art from the Renaissance to post-Renaissance periods. By contrast, “the East” and “Arab culture” are presented via a sequence of temporally and geographically discrete sondages, the implication being that we readers can assume they’re all connected, even if we don’t know exactly how. Belting infers an unsubstantiated link, for example, between Alhazen’s work on optics and the contemporaneous application of geometry to both architectural ornament and the regularization of Arabic script associated with the reforms of Abbasid vizier Ibn Muqla (d. 939). These developments occurred during the tenth and eleventh centuries and produced shared conceptions and formal traits of art and architecture across the Middle East that continued until the immediate aftermath of the Mongol conquests of the early 1200s. The aesthetics of art and architecture then gradually shifted in the Middle East, while the closest analogues to the region’s pre-Mongol aesthetics seem to have lived on in the western Islamic lands. Is it proper, given this branching historical path, to claim a relation and continuity between Alhazen’s theories and the late-fifteenth- through sixteenth-century Iranian scroll of geometric designs known as the Topkapi scroll, published and analyzed by Gülru Necipoğlu in 1995? The scroll figures prominently in Belting’s book, but he does not consider its function as a design resource.

O uso de Belting de autores modernos como Pamuk (um romance), Naficy e o arquiteto modernista egípcio Hasan Fathi é criticado por Necipoglu:

he relies on the novelist Orhan Pamuk’s Turkish novel, My Name
Is Red (1998, translation 2001) for the alleged deadly re-
ligious illicitness of mimetic representation at the Otto-
man court and for the unsubstantiated claim that
Islamic artists depicted the world from “the eye of God”
that is “both above and outside this world.” It is on the
basis of the modernist Egyptian architect Hassan Fathy’s
literary work, Fable of the Mashrabiyya (1949), that Belt-
ing defines the geometric window screen known as the
mashrabiyya as a barrier that “tames the gaze and puri-
fies it of all sensuous external images through its strict
geometry of interior light.

Negipoglu mostra uma sequência de evidências de que o pensamento estético muçulmano era bem mais variado do que essas simplificações.

Adendo: The Festival of Islam em Londres em 1973 e a categorização da arte islâmica como anti-secular

Grinell, K. (2018). Framing Islam at the World of Islam Festival, London, 1976, Journal of Muslims in Europe, 7(1), 73-93. doi: https://doi.org/10.1163/22117954-12341365

Grabar, Oleg. “Geometry and Ideology: The Festival of Islam and the Study of Islamic Art.” In Islamic Art and Beyond, volume III, Constructing the Study of Islamic Art. Hampshire: Ashgate Publishing Limited, 2006. First published in A Way Prepared, Essays on Islamic Culture in Honor of Richard Bayly Winder, edited by Farhad Kazemi and R. D. McChesney (New York and London: New York University Press, 1988), pp. 145-52. https://archnet.org/publications/5019

Para conhecer mais

Sevcenko, Margaret Bentley (ed). 1988. Theories and Principles of Design in the Architecture of Islamic Societies. Cambridge, Massachusetts: Aga Khan Program for Islamic Architecture. https://archnet.org/publications/4230

Guest & Ettinghausen. The Iconography of a Kāshān Luster Plate.

Bush, Olga. “Designs Always Polychromed or Gilded“: The Aesthetics of Color in the Alhambra,” in Sheila Blair and Jonathan Bloom, eds., And Diverse Are Their Hues: Color in Islamic Art and Culture. (New Haven: Yale University Press, 2011): 53-75.

Bush, Olga. “The Writing on the Wall: Reading the Decoration of the Alhambra,” Muqarnas, 26 (2009): 119-147.

Ünver Rüstem. From Auspicious Ornament to State Symbol: The Crescent Moon in Ottoman Art and Architecture. The Moon: A Voyage Through Time, exh. cat., ed. Christiane Gruber (Toronto: Aga Khan Museum, 2019), 45–55.

Ornament. Eva Baer, EI2.

Gulru Necipoglu. Early Modern Floral: The Agency of Ornament in Ottoman and Safavid Visual Cultures.

Gonzalez, The Hermeneutic of Islamic Ornament: The Example of the Alhambra.

Arabesque, Kühnel, EI2: “It seems unnecessary to emphasise that the arabesque
never has any symbolic significance but is merely one ornament from a large stock which includes other vegetal forms such as palmettes, rosettes and
naturalistic flowers, and abstract forms such as cloud-bands. At certain periods, however, it played predominant role.”

“Mesquitas árabes”

É complicado quando não se faz uma pesquisa no Google direito. É complicado quando se aceita um trabalho assim. É complicado ter uma disciplina com o nome de “Império Árabe Islâmico”. É complicado quando se publicam resultados assim para “disseminar ao público em geral”.

https://historiadaasia.wixsite.com/unifesp/post/galeria-levantamento-iconogr%C3%A1fico-das-mesquitas-%C3%A1rabes

Confusão da mesquita seljúcida de Isfahan (https://whc.unesco.org/en/list/1397/, https://www.britannica.com/topic/Great-Mosque-of-Esfahan, https://smarthistory.org/the-great-mosque-or-masjid-e-jameh-of-isfahan/) com a mesquita do Xá, na mesma cidade, que é safávida (século XVI). Isso que dá consultar a Wikipedia (mal consultado).

“Descrição: Nesta caligrafia, datada de 1860…” – é uma gravura, não é possível que não entendam a diferença entre “caligrafia” e “gravura”.

Na p. 43, a figura 40 tem um link que leva para uma página da mesquita do Imam Khomeini, em… Teerã! Talvez seja uma que foi construída por Fath Ali Shah Qajar em 1824, chamada Masjid-e Imam. Mas os autores do trabalho escrevem: “o interior da Grande Mesquita Isfahan, no Irã.”

“A partir de 1453 até 1931, a região esteve sobre o domínio do Império Otomano e, portanto, a construção sofreu algumas alterações.”

Ora, mas o I. Otomano não se esfacelou logo depois da 1ª Guerra Mundial, sendo a República Turca estabelecida em 1923?

“Mesquitas árabes”: o trabalho não é sobre elas. Simples assim.

“Em vista da ampla influência que a cultura árabe teve sobre o mundo, principalmente nas regiões que foram dominadas pelo Império, o presente trabalho busca apresentar um amplo material iconográfico sobre as principais mesquitas onde essa influência predominantemente se expressou por meio da arquitetura.”

Qual Império? Quantos impérios árabes existiram?

“Cada região absorveu de um modo a arte islâmica”.

Não, cada região desenvolveu de um modo um estilo de arte islâmica. Não existe uma “arte islâmica árabe” original que foi se difundindo e sendo modificada.

“Caligrafia árabe”

Regra #1: Não copie seu trabalho de sites da Internet.

Regra #2: Não confie em blogs.

Regra #3: Consulte bibliografia adequada.

Regra #4: Se esqueceu algo, volte ao início.

https://historiadaasia.wixsite.com/unifesp/post/galeria-a-caligrafia-%C3%A1rabe

“Estilo mais comum em…” “Comumente utilizada em…” etc.: vários erros grosseiros.

Parece que as fontes para pesquisa foram: https://www.estudopratico.com.br/escrita-arabe-a-conhecida-caligrafia-islamica/ e talvez http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=312.

E olhe a essencialização aí, gente!:

“Entretanto, as formas de arte islâmica possuem uma característica específica a qual
a define e mensura sua essência; é que não houve a dessacralização da arte islâmica nem de qualquer outra forma de conhecimento nessa cultura, ou seja, a arte, a política, a economia,
gastronomia, filosofia, etc, ainda estão sob influência da religião islâmica.”

Mas espere aí: não eram os orientalistas atacados por Said que faziam isso? (Spoiler: os orientalistas atacados por Said eram bem mais refinados do que isso, ao contrário da caricatura.)

Indumentária

https://historiadaasia.wixsite.com/unifesp/post/galeria-indument%C3%A1ria-%C3%A1rabe-isl%C3%A2mica

Figura 1: mulher afegã descrita como “árabe”.

Figura 3: mulheres usando o niqab, mas descritas como se estivessem usando “burca preta”.

Figura 21: não são líderes religiosos muçulmanos. O da esquerda deve ser copta. Abrindo o link confirma-se a espectativa. Não se exige que se conheça roupas de cristãos, mas bastava abrir o G1 e ler, não?

Nota: esses erros não são totalmente culpa dos alunos. A culpa é do professor que não leu o trabalho, ou não sabe do assunto, e ainda acha bonito postar isso. O desserviço de gente que, ao ser advertida, continua disponibilizando erros factuais e trabalhos medíocres como vitrine de curso é patético.

Rihanna &c.

“Após ser elogiada pela diversidade de modelos em seu desfile de lingerie Savage x Fenty Vol. 2 no último fim de semana, Rihanna irritou muçulmanos por usar uma música sagrada para a cultura islâmica em outra parte do show. ” https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/celebridades/rihanna-irrita-muculmanos-por-usar-musica-sagrada-em-desfile-de-lingerie-43650?cpid=txt”

E mais aqui: https://www.middleeasteye.net/news/rihanna-islam-hadith-lingerie-show-outrage

“The latest controversy raises yet further concerns about Rihanna’s perceived use of Islam as an aesthetic. 

She is certainly not the first hip-hop star to utilise Arabic or Islamic phrases in music, with singer Drake most recently doing so. “

Ora, mas não é que quem fez a música disse que pegou os samples de algo chamado “Baile Funk”?

“I want to deeply apologize for the offence caused by the vocal samples used in my song ‘DOOM’. The song was created using samples from Baile Funk tracks I found online. At the time, I was not aware that these samples used text from an Islamic Hadith.” (https://twitter.com/coucou_chloe/status/1313137444573806596).

Isso me lembra o caso do “Passinho do Romano“.

Islamophobia

https://www.theatlantic.com/international/archive/2014/10/is-islamophobia-real-maher-harris-aslan/381411/

marianne.net

“L’islamophobie comme concept est sans fondement scientifique”

Par Vigilance Universités 8-11 minutos


Dans les derniers mois, plusieurs fois la question de la légitimité du terme « islamophobie » a été posée comme si elle pouvait être tranchée par un argument d’autorité, et plus précisément d’autorité universitaire. Le fait que des universitaires utilisent ce terme prouverait qu’il est légitime et que, par conséquent, ceux qui critiquent son usage dans la vie publique (dans les discours politiques, les médias ou les titres de manifestations publiques) sont des individus peu recommandables, qui ne peuvent pas, quoi qu’ils en disent, être de vrais et sincères antiracistes. Voilà globalement ce que disent ou laissent entendre ceux qui prétendent s’appuyer ainsi sur l’autorité de l’université pour valider la nouvelle cible qu’ils veulent donner à la lutte antiraciste : l’islamophobie. Affrontons donc sans détour cet argument.

L’université peut-elle justifier l’emploi du terme « islamophobie » dans la vie publique ? En d’autres termes, est-ce que l’utilisation du terme d’islamophobie par un certain nombre d’universitaires peut cautionner l’emploi de ce terme dans les médias ou les discours politiques ? La réponse est simple et sans ambiguïté, et elle s’impose à toute personne rationnelle un peu informée. NON ! Ce « non » tranché repose sur un peu de logique élémentaire, en d’autres termes sur du bon sens, et sur un savoir sémantique accessible à tout observateur de la vie publique. La logique et le bon sens disent qu’une ou plusieurs personnes, qu’elles soient ou non universitaires, ne peuvent pas faire que trois choses distinctes soient une seule et même chose.

Islamophobie : trois réalités

Or, comme tout observateur peut le constater, et le regretter, « islamophobie » est, de fait, utilisé dans la vie publique pour désigner au moins trois choses distinctes : 1) les critiques ou attaques contre une religion, qu’il s’agisse de ses dogmes, ses textes, ses prophètes ou ses représentants historiques ; 2) les insultes ou attaques contre des personnes actuellement vivantes en raison de leur appartenance religieuse réelle ou supposée ; 3) la discrimination contre des personnes pour cause de leur appartenance religieuse réelle ou supposée. Le droit depuis longtemps reconnaît qu’il s’agit de trois réalités distinctes, dont seulement les deux dernières correspondent à des délits, la première étant au contraire un droit constitutif de la liberté d’expression. Or, retour au bon sens, aucun terme n’a le pouvoir magique de rendre trois égal à un.

Faut-il en conclure qu’on accuse ici les universitaires de grossières erreurs de logique ou encore d’ignorance crasse ? Pas du tout. D’abord, il peut y avoir des universitaires qui utilisent ce terme de façon rigoureuse, ou scientifiquement acceptable, en lui associant un sens précis et univoque. C’est une situation courante, celle où deux termes homonymes existent en parallèle. Le fait d’utiliser l’un des deux homonymes ne dit alors rien des qualités ou défauts de l’autre, et ne fournit donc aucun argument pour ou contre son usage.

Argument d’autorité

Ainsi, il ne vient à personne l’idée que les mathématiciens en usant du terme « chaos », dans le cadre de la « théorie du chaos » mathématique, justifient, invalident ou se prononcent de quelque manière que ce soit sur la pertinence d’utiliser le terme courant « chaos » pour désigner telle ou telle situation de la vie quotidienne. Un universitaire rigoureux, intellectuellement honnête et pas complètement ignorant des réalités sociales et politiques dans lesquelles il vit, fera bien sûr attention à ne pas mélanger les choses en mélangeant les notions, et donc, en particulier, à ne pas traiter des homonymes comme un seul et même terme.

Ensuite, l’ampleur de la communauté universitaire explique pourquoi notre critique n’est en rien une accusation portée contre elle. Sans nul doute, dans leur très grande majorité, les membres de la communauté universitaire ont les trois qualités mentionnées – rigueur, honnêteté intellectuelle et intelligence du monde dans lequel ils vivent – mais, sans nul doute aussi, quelques-uns en son sein ne satisfont pas ce standard élevé. Qu’une norme d’excellence ne puisse pas être satisfaite par tous pareillement est une loi qui vaut en tout lieu et en tout temps pour n’importe quelle communauté dès lors que celle-ci comprend plusieurs dizaines d’individus. D’ailleurs, pour se convaincre qu’il ne faut pas se départir de son bon sens devant un argument d’autorité, même si celui-ci invoque le jugement d’universitaires, il suffit de se rappeler le petit quarteron d’universitaires de renom incluant un ancien ministre, qui défendait, il y a quelques années, qu’il n’y avait pas de réchauffement climatique anthropique.

Concept illégitime

Certains, qu’ils soient ou non universitaires, défendront peut-être que le concept d’islamophobie est légitime en tant  que concept chapeau. Certes, argueront-ils, il recouvre trois choses distinctes, mais celles-ci sont si intimement liées qu’elles sont les trois facettes d’une même réalité, et qu’on passe de l’une à l’autre sans rupture de continuité. Là non plus, il n’est pas besoin d’experts ou d’autorités universitaires pour juger l’argument. Ou ce principe vaut pour toutes les religions ou il ne vaut pour aucune. Défendre que l’islam serait un cas à part sur ce point, serait une affirmation non seulement totalement arbitraire mais en plus désobligeante. Cela reviendrait à attribuer à l’islam une forme de dogmatisme ou d’intégrisme tout à fait particulier qui l’empêcherait de reconnaître des distinctions que les autres religions sont capables de reconnaître.

Mais, si le principe valait pour toutes les religions, alors, les concepts chapeaux christianophobie, bouddhéophobie etc. devraient aussi avoir droit de cité. Et Martin Scorsese, en 1988, aurait fait preuve de christianophobie, quand il a produit et diffusé le film La dernière tentation du Christ. Même si telle n’était pas son intention, il aurait alors insulté personnellement chaque chrétien et aurait introduit une forme de discrimination systématique à leur égard. Or, comme l’affirme le droit français, à juste titre, les insultes personnelles de même que l’introduction d’une forme de discrimination systématique à l’égard des membres d’une communauté sont des délits qui doivent être punis. Par conséquent, selon le principe de la religio-phobie une-en-trois-facettes, son film aurait dû être interdit, et il aurait dû être condamné pour délits d’insulte et de discrimination.

La religio-phobie ne vaut pour aucune religion

Inutile de s’étendre sur le fait qu’adopter ce principe reviendrait à remettre en cause la laïcité, et que seule une petite minorité des croyants dans chacune des grandes religions présentes en France désire réellement vivre dans une société où les instances religieuses de tout bord pourraient imposer une telle chape de plomb sur nos libertés d’expression. La conclusion s’impose : puisque la religio-phobie comme concept chapeau tricéphale ne peut valoir pour l’ensemble des religions, il ne peut valoir pour aucune d’entre elles.

L’islamophobie comme concept d’une réalité unique tripartite est donc sans fondement. On a ignoré jusqu’ici, dans notre raisonnement, le fait que « islamophobie » est utilisé par certains de façon plus large encore pour désigner, en plus, toute forme de racisme anti-arabe ou anti-maghrébin. Il va sans dire que s’il est condamnable de brouiller des distinctions utiles en confondant trois phénomènes distincts, il l’est encore plus d’en brouiller un plus grand nombre en en confondant quatre au lieu de trois.

Voilà pourquoi nous pensons qu’il n’y a pas de caution universitaire qui puisse valoir en la matière. Comme une hirondelle ne fait pas le printemps, un universitaire ne fait pas la vérité. Nous recommandons donc plutôt que chacun, en lisant cet article et d’autres, se fasse sa propre opinion sur l’emploi du terme islamophobie dans la vie publique. S’agit-il d’une arme politique utilisée par des militants pour occulter des distinctions essentielles en confondant trois, ou même quatre, choses sous un même vocable, ou s’agit-il d’un concept honnête qui sert à désigner de façon univoque un phénomène bien défini ?

À LIRE AUSSI : “Islamophobie : l’invention d’un concept”

Les signataires de ce texte, membres de Vigilance Universités, sont des universitaires dont la science est l’objet d’étude :

Françoise LONGY, Philosophe des sciences (université de Strasbourg)

Gilles DENIS, Historien et épistémologue de la biologie (université de Lille)

Éric GUICHARD, Philosophe des sciences et des techniques (université de Lyon)

Véronique LE RU, Philosophe des sciences (université de Reims Champagne-Ardenne)

Franck NEVEU, Linguiste et épistémologue des sciences du langage (Sorbonne Université)

Jean-Pierre SCHANDELER, Historien des sciences sociales (CNRS)

Jean SZLAMOWICZ, Linguiste, spécialiste d’analyse du discours (université de Bourgogne)



En 2019, 687 faits à caractère antisémite ont été constatés l’an dernier contre 541 en 2018, soit une augmentation de 27 %. S’agissant des faits antichrétiens, leur nombre est stable sur l’année, avec 1052 faits recensés, qui se décomposent en 996 actions et 56 menaces. Quant aux faits antimusulmans, leur nombre demeure relativement faible (154 faits, qui se décomposent en 63 actions et 91 menaces), mais il est en hausse par rapport à 2018.

https://www.gouvernement.fr/bilan-2019-des-actes-antireligieux-antisemites-racistes-et-xenophobes

Ver também: https://www.francetvinfo.fr/societe/religion/actes-antichretiens-en-france-que-signifient-vraiment-les-chiffres-du-gouvernement_3803085.html

Caligrafia, Ibn Khaldun, “luxúria” e divagações místicas

Ouvi uma interpretação de um capítulo dos Prolegômenos (Muqaddimah) de Ibn Khaldun sobre a caligrafia, em uma palestra intitulada “Luxúria e Iluminação no Islã: a arte da caligrafia”. Não saber pronunciar o nome do autor nem é um problema em si. Mas traduzir “luxury” como “luxúria” é o fim da picada. Primeiro que geralmente devemos optar por usar uma palavra com seu sentido usual. Suspeitei que não combinava com caligrafia, nem com a teoria de Ibn Khaldun. Procurei pelo termo na tradução de Rosenthal, e “lust” não aparece nenhuma vez. Por outro lado, “luxury” aparece 196 vezes. E nem tem a desculpa, porque nem no dicionário nem no Google Translator “luxury” é luxúria.

O palestrante divaga sobre explicações para algo já vago, com hipóteses e premissas mal estabelecidas, e usa Ibn Khaldun como se combinasse com as teorias históricas usuais que explicam o surgimento e o desenvolvimento da caligrafia árabe. Em segundo lugar, ele faz uma apresentação desconexa das interpretações místicas do alfabeto, que aparentemente nada têm a ver nem com Ibn Khaldun nem com teorias históricas para explicar o que ele queria explicar.

Ele comete vários erros factuais. Ao ser indagado:

“Não existe mistério na origem da escrita árabe” — Se entendi bem, foi dito que o nabateu que teria sido derivado do siríaco. Mas o nabateu e o aramaico/siríaco são bem diferentes, e o nabateu não “deriva” do siríaco. Há duas teorias sobre a origem da escrita árabe: o nabateu e o aramaico. Não existe “mistério”, mas existe debate. 

A resposta foi “eu só quis mostrar que tinha uma origem”, ou algo equivalente, como se fosse algo bem simples ou óbvio. Seria mais simples ler o livro de Blair, que tem uma explicação bem clara, antes de dizer coisas simplórias como “é óbvio que parece com o nabateu”, sendo que os nabateus não eram do sul do Iraque, não tinham influência lá, e sua civilização já tinha desaparecido há séculos.

Ao contrário do que foi afirmado, Uthman não usou  o kúfico. Os companheiros do profeta não aprenderam esse tipo de escrita, e os primeiros alcorões eram escritos em algo chamado ‘hijazi ou ma’il”.

Foi afirmado que Ibn al-Bawwab era vizir e que seguia uma escola específica e que isso influenciaria sua escrita. Ele nunca foi vizir e nunca foi paladino de escola jurídica nenhuma, ele era bibliotecário e escriba de um vizir búyida (xiita), embora fosse sunita. Alain George e Sheila Blair desconstróem essa ideia de que há uma ligação necessária entre a codificação das escritas cursivas e um aparato político-religioso propagandístico (veja apostila). Mesm assim, nem o próprio Tabbaa, apresentado pelo palestrante, afirma essas coisas de Ibn al-Bawwab. A resposta evasiva do estilo “isso foi o que eu li”, “isso é opinião de fulano”, não cai bem.

E mais: a teoria teológico-política de Tabbaa não combina com outras teorias: social/artística (Whelan, Blair), técnica (Déroche).

A própria teoria de Ibn Khaldun, simplista em todos os termos, não é analisada criticamente, e é irrelevante e incompatível com outras teorias a respeito da caligrafia árabe. Ele não liga a caligrafia a um ponto teológico-político. Para ele, a teoria de Tabbaa, se tivesse alguma validade, seria inócua: adiantou o califa e o vizir fazerem algo, se é que fizeram? O califado estava em crise, sem poder, e continuou do mesmo jeito, só que pior. A parte do desenvolvimento da burocracia é interessante, mas o desenvolvimento da burocracia segundo Tabbaa é bem diferente da interpretação de Whelan.

“Ah, mas você não pode criticar Ibn Khaldun, quem você acha que é, atacando um grande sábio”, pensarão alguns. Posso sim. Ibn Khaldun tem uma análise brilhante mas que se baseia em poucos fatores estruturais. Tudo gira em torno da oposição sedentarismo / nomadismo, e das consequências disso para o poder, em um ciclo de altos e baixos (conquista, acomodação, florescimento das técnicas, enfraquecimento, decadência, conquista por outros mais fortes). Mas quais as consequências para a explicação da caligrafia segundo Ibn Khaldun? Derivado de seu paradigma, a caligrafia, como refinamento da escrita, só poderia ter-se desenvolvido em um ambiente urbano. Falar isso é quase uma banalidade. Mas, como uma causa pode ser necessária, mas não suficiente, ter um ambiente urbano e uma alta civilização não basta para desenvolver a caligrafia. Se fosse assim, por que não se teria desenvolvido no mesmo patamar em outras grandes civilizações, como Grécia e Roma? A resposta é mais sutil do que parece. Como muitos outros, Ibn Khaldun analisa a caligrafia principalmente do ponto de vista da clareza e da técnica. E, desse ponto de vista, a escrita latina é tão clara, ou até mais clara, que o árabe. Ibn Khaldun, então, não explica por que a civilização chinesa tem a caligrafia como grande arte e, digamos, a Índia pré-islâmica não. E, segundo uma interpretação khalduniana, o refinamento técnico que levou ao desenvolvimento da caligrafia abássida foi o mesmo que prenunciou sua derrocada. Não seria isso uma crítica ao luxo, pelo menos no sentido do realismo político, se não em um leve moralismo que perpassa a obra?

Filosofia islâmica, bayt al-hikmah

Segundo o professor Jamil Iskandar, a filosofia islâmica nasceu da necessidade de interpretar o Alcorão. Mas, na verdade, o racionalismo da kalâm (teologia) dos mu’tazilitas deixou de ser implementado à força pelo califado abássida no governo do califa al-Mutawakkil no século IX, que foi no sentido contrário e proibiu o ensino da teologia (kalam). O tradicionalismo dos “ahl al-hadith” (“gente das tradições”), exemplificado pela postura de Ibn Hanbal, ganhou força. Um caminho intermediário foi a postura de al-Ash’ari.

Segundo Aaron Hughes (Muslim Identities, p. 189):

“the Mutazilites referred to themselves as the ahl al-adl
waʾ-tawhid (People of [Divine] Justice and Unity), and they played a crucial
role in introducing rationalism into Islam and then in developing Islamic
sciences.
The result was the introduction of Greek rationalist speculation into
Islam. It is important, however, not to regard the Mutazilites as philosophers,
even though they used reason. They often knew their conclusions beforehand
and so used rationalism to argue backward to formulate premises.”

Segundo Halverson: [Halverson, Jeffry R. (2010). Theology and Creed in Sunni Islam: The Muslim Brotherhood, Ash’arism, and Political Sunnism. Basingstoke: Palgrave Macmillan.]:

Mesmo assim, ainda estamos falando no nível da teologia. Se mesmo esta foi relegada a segundo plano e praticamente saiu de cena, enquanto que as outras ciências islâmicas floresceram in tandem: datam da mesma época as grandes compilações de hadith (Sahih Bukhari, Muslim, Abu Daûd, Tirmidhi, Mâjah) e a formação do sunismo e o desenvolvimento das escolas jurídicas.

Frequentemente os filósofos eram mal-vistos pelos teólogos / “doutores da lei” (ulemás). Por outro lado, a chamada “filosofia islâmica” também é referida como “filosofia árabe” (vide Gutas, Dimitri. “The Study of Arabic Philosophy in the Twentieth Century: An Essay on the Historiography of Arabic Philosophy.” British Journal of Middle Eastern Studies, vol. 29, no. 1, 2002, pp. 5–25. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/826146. Accessed 26 Apr. 2021, e o breve artigo da Encyclopaedia Britannica: https://www.britannica.com/topic/Arabic-philosophy).

Segundo a Britannica:

Islamic philosophy, or Arabic philosophy, Arabic falsafah, doctrines of the philosophers of the 9th–12th century Islamic world who wrote primarily in Arabic.

Islamic philosophy is related to but distinct from the theological doctrines and movements in Islam. Al-Kindi, for instance, one of the first Islamic philosophers, flourished in a milieu in which the dialectic theology (kalām) of the Muʿtazilah movement spurred much of the interest and investment in the study of Greek philosophy, but he himself was not a participant in the theological debates of the time. Al-Rāzī, meanwhile, was influenced by contemporary theological debates on atomism in his work on the composition of matter. Christians and Jews also participated in the philosophical movements of the Islamic world, and schools of thought were divided by philosophic rather than religious doctrine.

The prominence of classical Islamic philosophy declined in the 12th and 13th centuries in favour of mysticism, as articulated by thinkers such as al-Ghazālī and Ibn al-ʿArabī, and traditionalism, as promulgated by Ibn Taymiyyah. Nonetheless, Islamic philosophy, which reintroduced Aristotelianism to the Latin West, remained influential in the development of medieval Scholasticism and of modern European philosophy.

Ora, é meio tendencioso/dissimulado (disingenuous) argumentar, então, a partir de um automatismo simplista para explicar o surgimento da filosofia em língua árabe (não sei o que ele diz sobre o desenvolvimento da filosofia árabe, mas não estranharia se fosse tributária da teologia segundo ele). Não, não é preciso (necessariamente) de filosofia grega para entender o Alcorão. A analogia (qiyas) e o raciocínio lógico eram fontes do direito islâmico antes do surgimento da filosofia propriamente dita (e depois dos séculos IX-X ficaram em segundo plano, vide a discussão de Joseph Schacht sobre a defesa do precedente profético na teoria jurídica de al-Shafi’i).

Além disso, Iskandar parte do pressuposto de uma explicação religiosa para o desenvolvimento da filosofia, como que para exaltar a religião: “Olhem que religião bonita que promove o conhecimento filosófico!” Isso isenta a religião islâmica de um papel causal negativo: se a filosofia foi promovida, foi por causa do islamismo (coisa boa), mas se ela deixou de ser promovida, provavelmente foi por causa de governantes “ignorantes” (“coisa ruim, nada a ver com a religião”). Por outro lado, isso reduz os muçulmanos a “seguidores da religião islâmica”, e a cultura da civilização islâmica é vista somente do prisma da religião da maioria do povo dessas terras, e não segundo outras variáveis (cultura, poder, economia). Ele fica sendo o torcedor de um campo histórico (a supor, os filósofos, os místicos, e os teólogos mu’tazilitas?), enquanto que do outro lado temos a cristalização da doutrina jurídica e teológica após o século X, em grande medida avessa a especulações teológico-filosóficas.

Outro ponto é que foi o promotor do racionalismo, o califa al-Ma’mun, que teria sido uma das peças-chave da chamada Era de Ouro do Califado Abássida, ao impulsionar o movimento de tradução e construir a famosa “Casa da Sabedoria” (bayt al-.hikmah) em Bagdá. Só que esse movimento era baseado em tradutores cristãos, e além disso parece que essa atribuição da casa da sabedoria a uma instituição de ensino grandiosa é, segundo Ghutas, uma criação do século XX, embora haja controvérsias.

“Decolonialismo”, “epistemologia” e conhecimento

Chambers, Paul Anthony. Epistemology and Domination: Problems with the Coloniality of Knowledge Thesis in Latin American Decolonial Theory. Dados, 2020, v. 63, n. 4. https://www.scielo.br/j/dados/a/TVtvgXwKQQXvtkVYzgv87Ht/?lang=en#

Ou aqui: https://www.researchgate.net/publication/337772280_Epistemologia_y_politica_una_critica_de_la_tesis_de_la_colonialidad_del_saber

Resumo: A teoria decolonial latino-americana é construída em torno da tese da “colonialidade do conhecimento”, que afirma que o domínio sociopolítico da América Latina e de outras regiões da periferia global pelos países europeus e pelos Estados Unidos está diretamente relacionado à imposição colonial inicial e à subsequente reprodução cultural da chamada “epistemologia ocidental” e da ciência. Defendo que as reivindicações epistemológicas de quatro pensadores decoloniais (…) são problemáticas por várias razões: baseiam-se em leituras distorcidas e simplistas de Descartes, Hume e outras figuras do Iluminismo; fazem generalizações controversas sobre a chamada epistemologia ocidental; e, em última instância, levam ao relativismo epistêmico, que é uma base problemática para as ciências sociais e, ao contrário das aspirações decoloniais, torna o subalterno incapaz de falar.

Destaques:

his [Quijano’s] complaint about Western/Cartesian epistemology is that “it made it possible to omit every reference to any other ‘subject’ outside the European context” ( Quijano, 2007: 173), thereby invisibilizing the colonial order. This Western epistemological paradigm implies that

only European culture is rational, it can contain “subjects” – the rest are not rational, they cannot be or harbor “subjects”. As a consequence, the other cultures are different in the sense that they are unequal, in fact inferior, by nature. They only can be “objects” of knowledge or/and of domination practices. From that perspective, the relation between European culture and the other cultures was established and has been maintained, as a relation between “subject” and “object”. It blocked, therefore, every relation of communication, of interchange of knowledge and of modes of producing knowledge between the cultures, since the paradigm implies that between “subject” and “object” there can be but a relation of externality ( Quijano, 2007: 174).

However, Quijano provides no evidence or clarification in support of these claims, and his other epistemological assertions are based on a very superficial reading of Descartes, which Quijano problematically takes to be representative of “Western epistemology”. No attempt is made to do justice to the complexity of Descartes’ thought or its relation to its philosophical and historical context. In fact, Quijano does not even cite any works of Descartes or any other Enlightenment thinker – the article has just two references, both to works by Quijano himself. These omissions are significant because Quijano’s aforementioned claims are problematized on only the third page of the Discourse , where Descartes writes: “It is good to know something of the customs of various peoples, so that we may judge our own more soundly and not think that everything contrary to our own ways is ridiculous and irrational, as those who have seen nothing of the world ordinarily do” (Cottingham, Stoothoff and Murdoch, 1985:113-114; hereon CSM)5 .

E finalmente:

“Another problem with the coloniality of knowledge thesis is that, in the works of the authors analysed here, it is based on sweeping generalizations, non-sequiturs , wild extrapolations, disregard for carefully reasoned argument, context and nuance, and uses opaque, often pretentious language.”

“Although Mignolo talks about legitimizing all ways of thinking, not specific thoughts, it still raises concerns. For example, are political societies and social movements to make decisions of public interest on the basis of hallucinogenic rituals carried out by shamans, by consulting the tarot, or by the public (universal) standards of rational, evidence-based inquiry? According to the decolonial perspective, these must all be deemed equally valid. This is not to imply that such rituals and practices do not embody forms of knowledge that are valid in certain contexts for certain groups of people. It is merely to say that when it comes to the plural, public world of politics and political critique, scientific knowledge and logical, evidenced-based reasoning provide a necessary baseline”

A falta de lógica e afirmações sem base também podem ser vistas aqui (catando só o que há de interesse mais específico para nossos propósitos):

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Rev. bras. Ci. Soc.,  São Paulo ,  v. 32, n. 94,  e329402, 2017. https://doi.org/10.17666/329402/2017.

“A partir do desmembramento do califado islâmico (formado no século VII e governado pelos omíadas nos séculos VII e VIII, e pelos abássidas do século VIII até o século XIII) no século XIV, três sultanatos surgiram: o Sultanato Otomano em Anatólia, com o seu centro em Constantinopla, o Sultanato Safávida em Azerbaijão, com o seu centro em Baku e o Sultanato Mogol, formado a partir das ruínas do Sultanato de Déli, que durou de 1206 a 1526.”

Eu realmente não sei de onde ele tirou que existiu um sultanato safávida baseado em Baku. Não pode ser. Os três eram impérios… que conquistaram outros povos e culturas, e em muitos casos impuseram de uma forma ou outra sua fé à força.

“Por trás do Irã há a história da Pérsia e do Sultanato Safávida, e por trás do Iraque há a história do Sultanato Otomano.”

Por trás da história do Iraque há (além do colonialismo britânico, que instituiu sua monarquia) uma vontade de se desvencilhar do Império Otomano e assentar sua identidade em um nacionalismo árabe.

Mas poderiam retorquir: “Mas dá um desconto, ele não é especialista em islã, nem em Índia, nem em Iraque”… Mas aí é que está: ele usa esses exemplos de conhecimento falho e lacunar para sustentar teses mais gerais. E quando ele chega nas teses (ou exemplos) mais gerais, suas afirmações são tão gerais e categóricas que ultrapassam sobremaneira o limite do plausível ou das desculpas de falta de especialização.

“o sistema colonial inventou também as categorias “homossexual” e “heterossexual” (por exemplo, a expressão famosa e/ou infame de Bartolomeu de las Casas: “el pecado nefando”), assim como inventou as categorias “homem” e “mulher”.

Essa é realmente difícil de engolir. Poderia ter qualificado como “uma nova compreensão” dessas categorias, “esses conceitos como os entendemos hoje”, mas não. É geral mesmo – e, portanto, absurdo e, por que não, ridículo.

“Uma hierarquia espiritual/religiosa que privilegiava espiritualidades cristãs em detrimento de espiritualidades não cristãs/não ocidentais foi institucionalizada na globalização da Igreja Cristã (católica e depois protestante).”

Bom, em primeiro lugar, essa “globalização” inclui também os missionários cristãos nestorianos para a China durante a dinastia Tang? Os cristãos da Índia desde não se sabe quando? Os etíopes? Essa hierarquia espiritual inclui também outros monoteísmos, especialmente o islamismo, que “privilegia espiritualidades muçulmanas em detrimento de espiritualidades não muçulmanas”?

“Uma hierarquia estética (a arte, a literatura, o teatro, a ópera) que, através das suas respectivas instituições (os museus, as escolas das belas artes, as casas de ópera, as revistas lustrosas com reproduções esplêndidas de pinturas), administra os sentidos e molda as sensibilidades ao estabelecer as normas do belo e do sublime, do que é arte e do que não é, do que será incluído e do que será excluído, do que será premiado e do que será ignorado.”

Não dá para saber aonde se quer chegar. Sim, essas hierarquias existem e existiram. Se elas são justas ou injustas, imorais ou morais, pode-se discutir. Mas construir classificações é a base da construção de uma “cultura” ou visão de mundo. Cada civilização tem suas próprias instituições, e esperar que uma tenha instituições das outras é o cúmulo do absurdo. Certamente os chineses e japoneses também tinham uma hierarquia estética e cultural…

“Uma hierarquia epistêmica que privilegiava o conhecimento e a cosmologia ocidentais em detrimento dos conhecimentos e das cosmologias não ocidentais foi institucionalizada no sistema universitário global, nas editoras e na Encyclopedia Britannica, tanto no papel quanto na internet.”

E você queria que os “ocidentais” escrevessem enciclopédias em que línguas? Ou que tipos de enciclopédias? Queria que pensassem em que parâmetros? E você, está escrevendo em que língua?

Ah, a utopia:

“A ordem global que estou advogando é pluriversal, não universal, e isso significa tomar a pluriversalidade como um projeto universal em que todas as opções rivais teriam de se aceitar. Aceitá-lo somente requer, como declarou Ottobah Cugoano, que nos coloquemos, enquanto pessoas, Estados, instituições, no lugar onde nenhum ser humano tem o direito de dominar e se impor a outro ser humano.”

Opções rivais se aceitarem seria deixar de ser rivais? Mesmo sendo alternativas às vezes excludentes? Para nenhum ser humano dominar e se impor, não seria necessário acabar com a cultura e o Estado? Pois os próprios Estados (e principalmente os Estados-nação) são fundamentados na lógica da diferença… como conceber uma sociedade “sem poder”? O poder e a coerção são sempre maus? Como aceitar essa pluriversalidade se nem todos os projetos cabem nesse âmbito? Excluir alguns projetos dentro desse projeto pluriversal não seria cair em outro tipo de universalismo?

Portanto, não me venham com argumentos de que “ah, mas essa teoria” [que de teoria não tem nada, não tem método, nem lógica, nem fundamento], “essa teoria descolonial pode não servir para o Oriente Médio, mas serve para cá”. Não, não serve não. Porque ela carece de lógica e de embasamento factual, e por ser utópica, pretenciosa e moralista (usar jargão, neologismos, distorções de sentido, linguagem rebuscada, opaca e sem sentido etc. é só o cúmulo).